sábado, agosto 25, 2007

Bin Laden inspirado em Asimov?


Pouco tempo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro - após o nome 'Al Qaeda' tornar-se amplamente conhecido - circulou o rumor de que o nome da organização terrorista e a própria filosofia da mesma teriam sido inspirados pela obra de um dos maiores escritores de ciência e ficção científica, Isaac Asimov. Há pouco o jornal inglês 'The Guardian' abordou e divulgou mais amplamente o rumor em um artigo muito comentado na Internet [1]. Ultrajante como ele possa parecer, e apesar de sua pouca solidez, o rumor revela coincidências extremamente irônicas para dizer o mínimo.

Nos anos 40 Asimov escreveu uma série de contos de ficção científica publicados em revistas populares da área que acabariam por ser reunidos em uma trilogia chamada 'Fundação'. Sua idéia inicial era escrever sobre a queda de um gigantesco Império Galáctico, inspirado em "Declínio e Queda do Império Romano" de Edward Gibbon. Contudo, foi em conversas com seu editor Stuart Campbell (algo não incomum) que surgiu o conceito de uma vasta série de histórias sobre o período de mil anos entre a queda do Primeiro Império Galáctico e o estabelecimento do Segundo Império, sob a luz do conceito fascinante da ciência da 'psico-história'.

A psico-história é central a toda a série, com a qual Asimov brinca assim como brincou com as leis da robótica em sua série de histórias sobre robôs. Tal ciência permitiria prever estatisticamente as reações de grandes massas de pessoas, na ordem de bilhões ou mais, que ele compara ao estudo físico-matemático dos gases. Embora o movimento de uma única molécula de gás seja imprevisível, trilhões de moléculas de gás podem ser estudadas e ter seu comportamento previsto com segurança. Da mesma forma, as atitudes de uma pessoa são imprevisíveis, mas as populações de planetas inteiros poderiam ter sua história prevista estatisticamente com uma segurança que só tenderia a crescer à medida que o número de pessoas englobasse os habitantes de sistemas estelares, e mesmo de toda a Galáxia.

E é através da criação da psico-história que o personagem Hari Seldon constata os sinais sutis de que o Império Galáctico em que vive está no inevitável caminho da ruína. Contudo, com uma ciência capaz de desnudar os caminhos da história, Seldon mostra que a era de trevas posterior à queda do Império pode ser diminuída de 30.000 anos ao mínimo de 'apenas' mil. Ele cria para isso duas 'Fundações', ou seja, as fundações que garantirão que as forças da história estabeleçam o Segundo Império Galáctico no menor tempo possível.

A trilogia da 'Fundação' é grandiosa, um épico de ficção científica cobrindo mais de 300 anos que não por acaso ganhou em 1966 o prêmio Hugo de melhor série de ficção científica de todos os tempos, coerentemente na primeira e última vez que tal prêmio foi concedido. 'Fundação' deixou para trás até mesmo 'O Senhor dos Anéis'.

Mas nós deixamos a ficção científica de lado, e voltamos ao mundo real. O conceito de Asimov sobre uma ciência exata sobre o comportamento humano, muito mais próxima da matemática que da psicanálise, é contemporânea e de certa forma uma visão ufanista da teoria de jogos, uma parte fascinante da matemática desenvolvida por ilustres como o matemático húngaro John von Neumann, mais conhecido por suas contribuições à ciência da computação. Embora Asimov cite o uso de neurologia, química e toda uma gama de ciências envolvidas na psico-história, ele deixa bem claro que seu cerne é matemático.

De um ponto de vista mais atrelado à ciência que à ficção de Asimov, se Hari Seldon tem uma contraparte na vida real ela é então von Neumann, que chegou a aplicar idéias da teoria de jogos para prever o resultado da Segunda Guerra Mundial e mesmo da Guerra Fria [2]. Ele parece ter acertado, mas é improvável que a teoria de jogos tenha realmente desempenhado um papel comparável ao da fictícia psico-história.

E então, finalmente chegamos aos rumores do mundo real. Em outubro de 2001 uma mensagem em um grupo de discussão sobre a Rússia contemporânea dizia:
Autor do "Mein Kampf" de bin Laden natural da Rússia?

Algumas semanas atrás eu pedi para um amigo meu, o escritor russo e veterano da guerra no Afeganistão Vladimir Grigoriev, descobrir se "Fundação", (...) foi traduzido e publicado em árabe, e nesse caso, sob que título? Ontem, eu descobri que meu amigo contatou sua ex-professora Olga Frolova, atualmente Diretor do Departamento de Filologia árabe, Escola de Idiomas Orientais, St. Petersburg State University, e ela confirmou que o livro foi publicado em árabe como "Al Qaeda", o título combinando com o nome da rede terrorista internacional fundada e encabeçada por Osama bin Laden. (...)
Esta coincidência estranha seria de pouco interesse se não fosse por paralelos abundantes entre o enredo do livro de Asimov e os eventos que se desdobram agora. (...)
Acredito que o público seria aliviado ao perceber que o Terrorista internacionalmente temido número 1 está tentando imitar o enredo de seu romance de ficção científica favorito. Eu também acho que o estudo de "Fundação" (junto com suas seqüências e predecessores) pode ajudar os governantes ao redor do globo a entender melhor contra o quê eles estão e quais são os objetivos últimos de Osama bin Laden, da mesma forma que um estudo de "Mein Kampf" teria beneficiado enormemente as contrapartes de Adolf Hitler se elas tivessem se importado em ler o livro e prestar atenção ao que ele dizia. [3]
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Essa mensagem é original de Jack Wormack, e é uma das duas fontes que relataram o rumor da ligação Al-Qaeda/Fundação na internet e assim ao mundo. A outra fonte foi China Miéville:
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`Meu supervisor, especialista no Oriente Médio, me contou sobre um rumor circulando sobre o nome da rede de Bin Laden. O termo "Al-Qaeda" não parece ter nenhum precedente político em árabe, e foi então visto meio que como um enigma pelos peritos, até que alguém mostrou que um livro muito popular no mundo árabe, aparentemente grandes leitores de ficção científica traduzida, é Fundação de Asimov, o título do qual é traduzido como "Al-Qaeda". Improvável como soa, esta é a única teoria que se pode imaginar.' [4]
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Qual a verdade nestes rumores? O que parece certo é que Al-Qaeda pode sim ser traduzido como 'A Fundação', que é praticamente um sinônimo de 'A Base', a tradução mais comum [5]. Ao que tudo indica contudo, o que está errado é que 'Fundação' de Isaac Asimov nunca foi traduzido ao árabe. Embora os boatos afirmem que uma tradução de Fundação ao árabe existiu, ninguém pôde confirmar a informação até hoje. A estória em particular sobre árabes serem grandes leitores de obras de ficção científica traduzidas é claramente enganosa, a verdade clara é que traduções de obras inglesas de ficção científica são extremamente raras no mundo árabe.

Se Fundação nunca foi traduzido ao árabe, seja como Al Qaeda ou com qualquer outro título, é difícil que tenha se tornado o 'Mein Kampf' de Bin Laden. Além disso, embora a mídia tenha divulgado amplamente o conceito da Al Qaeda como algo coeso e bem organizado, as coisas parecem ser na realidade bem diferentes, e o próprio nome pode ser uma atribuição indevida às organizações e atividades em que Bin Laden está envolvido. E por fim, a situação torna-se ainda mais implausível se notarmos que Isaac Asimov era judeu, nascido na Rússia, que imigrou para os EUA e se tornou um desinibido ateísta e pacifista. As coisas só seriam piores na visão de mundo que se acredita que Bin Laden tem se Asimov fosse uma mulher.

Ou seja, não só não temos nenhuma prova direta de que Bin Laden leu 'Fundação' traduzido como Al Qaeda, como temos sérias evidências de que ele sequer leria algo escrito por Asimov. O próprio nome 'Isaac Asimov' já é evidentemente judeu e russo.

Isso deveria selar a questão, mas a paranóia tem aqui um prato cheio, e isto deriva do próprio enredo de 'Fundação'. Os paralelos são realmente notáveis se apenas nos dedicarmos a procurá-los. A queda do Império Galáctico é a queda do "império" norte-americano, e Osama Bin Laden seria uma contraparte do personagem Hari Seldon, estabelecendo organizações clandestinas formando a base de um novo Império.

Já contamos qual era o sentido das Fundações de Seldon - garantir que as forças da história levassem ao rápido estabelecimento de um novo Império Galáctico através da psico-história. Também contamos que o período "mais rápido" era de mil anos, opondo-se à barbárie de 30.000 anos que ocorreria sem a mão de Seldon. Mas Hari Seldon não vive 1.000 anos, a maior parte da ação de Fundação terá lugar depois que ele já tiver morrido. Problema? Não se lembrarmos do que é a psico-história, uma ciência capaz de prever o futuro da Humanidade. Seldon deixa pré-gravadas mensagens holográficas com instruções que só são exibidas nos momentos certos, momentos de crise já previstos por ele com séculos de antecedência. E esse é um outro paralelo com as mensagens de vídeo pré-gravadas de Bin Laden exibidas pela TV árabe Al Jazeera.

Um paralelo que pode intrigar é como a Fundação de Seldon acaba se valendo da religião como instrumento no seu rumo ao Segundo Império Galáctico. Inicialmente um grupo pequeno e completamente indefeso de cientistas nos extremos da Galáxia, a primeira ameaça sofrida pela Fundação não é o distante Velho Império com seu planeta-capital próximo do núcleo galáctico, mas sim seus vizinhos próximos. Ela consegue superar o perigo por algum tempo valendo-se do equilíbrio de forças de seus vizinhos, contudo uma estabilidade mais duradoura só é alcançada quando criam uma pseudo-religião que é adotada pelos habitantes dos planetas vizinhos.

Bin Laden e a Al Qaeda encontraram certa estabilidade através do Talibã, e se enxergássemos os eventos sob a luz da Fundação poderíamos imaginar que todo o discurso fundamentalista islâmico deles é apenas um meio utilizado para a formação de um novo Império, e que seria descartado quando não fosse mais necessário. Isto porque o uso de uma pseudo-religião pela Fundação de Seldon é descartado assim que as forças históricas o tornam desnecessário em favor de outros métodos de expansão, cada um adequado às circunstâncias históricas.

Também pode interessar o fato de que em 'Fundação', Seldon cria de fato duas Fundações. Uma é amplamente visível, e é a que se envolve com pseudo-religiões e até entra em conflito com os remanescentes do Império. É a 'Primeira Fundação'. A outra é, obviamente, a 'Segunda Fundação'. Contar muito sobre a Segunda Fundação deve estragar as boas surpresas do livro, mas para enxergarmos paralelos basta dizer que a Segunda Fundação é oculta e age de forma extremamente sutil, mas não menos importante aos objetivos de Seldon. Haveria uma 'Segunda Al Qaeda'?

Entretanto, todos esses paralelos são tristemente irônicos. O que Bin Laden e a Al Qaeda fazem vão contra tudo que é defendido por Hari Seldon e a Fundação. O mais explícito sinal disto é um dos motes da Fundação em seus primeiros momentos de crise: "A violência é o último refúgio dos incompetentes". Afinal, seu objetivo não é simplesmente o estabelecimento de um novo Império, o que poderia talvez ser feito à força em bem menos que mil anos, mas sim o estabelecimento de um Império verdadeiramente novo, mais estável e capaz de durar por eras. Estabilidade pode ser muito mais garantida com felicidade que com medo.

A ligação Fundação/Al Qaeda é basicamente uma coincidência, mas não se resume a isso. Os eventos de 11 de setembro e as pretensões de Bin Laden são algo de envergadura enorme, e seria esperado que houvesse pontos em comum com um épico de ficção sobre a queda e estabelecimento de um novo Império. Isto pode ser mesmo notado quando os terroristas se escondendo em cavernas no Afeganistão encontram paralelos com outra obra de fição, Duna de Frank Herbert, que envolve desertos, jihads, líderes messiânicos e Impérios decadentes. Incidentalmente, o nome tribal secreto que o personagem central recebe em Duna é Usul, que significaria 'a base do pilar'. A base, a fundação, Al Qaeda.

Uma outra nota nesta discussão é a bizarra constatação de que Fundação foi de fato usado como guia por um culto fanático. Foi o culto japonês Aum Shinrikyo, um misto doentio e distorcido de crenças místicas orientais com ficção científica ocidental. O chefe de ciência da Aum, Hideo Murai, alegou que Fundação era sua maior inspiração, com seus ensinamentos a respeito do estabelecimento de um novo Império por um grupo isolado e pioneiro de cientistas [6]. O culto lançou o ataque terrorista com gás sarin ao metrô de Tóquio em 1995, intoxicando mais de 5.000 pessoas e matando doze. Agora desmantelado, ele ainda parece sobreviver sob outros nomes e formas. É bem provável que seus remanescentes ainda se 'inspirem' pela obra de Asimov. Murai foi morto algum tempo depois de fazer sua declaração sobre Fundação.

No final, a maior e mais triste coincidência entre a ficção de Asimov e a realidade contemporânea são as pretensões megalomaníacas ou messiânicas de certos grupos fanáticos, que infelizmente não coincidem com a sabedoria que pode ser encontrada até mesmo em obras de ficção científica. "A violência é o último refúgio dos incompetentes".

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