quarta-feira, janeiro 06, 2010

Trecho de meu livro Poemas Suicidas - Diário de um Moribundo



UMA BRISA FRIA VINDA DO INFERNO ME REFRESCOU O ROSTO


- Vamos comer – disse Ruth com um sorriso angelical.
- É claro, estou morto e com fome também – falou Pablo rindo.
- Sabe; eu estava no supermercado pensando em tudo que aconteceu – disse Ruth.
- Tudo o que? – perguntou Pablo curioso.
- No modo como a gente se conheceu, como estamos hoje e... – Ruth, parou de falar por uns instantes, deixando Pablo ainda mais curioso.
- Como assim? – disse Pablo pegando um pouco da comida que Ruth lhe havia preparado.
- Esse nosso modo de viver Pablo, não é tão legal – disse Ruth com um semblante meio triste.
- Nossa vida? Vivemos e só Ruth; sem regras impostas para nós por essa sociedade hipócrita que mata em nome da paz; isso é uma piada, somos nossos deuses, não esses homens que falam palavras doces e cagam veneno em nós – disse Pablo olhando Ruth.
- Mas Pablo, você quer um filho, isso mudaria nossas vidas, teríamos que mudar – disse Ruth tocando a mão de Pablo.
- Ruth, eu quero realmente um filho seu, mas não seria um bom pai, então eu já fiz minha escolha, eu queria muito que fosse você, porque eu te amo, te amo tanto que chego a ficar enjoado, e quando você está longe, me sinto como se estivesse com abstinência e isso faz meu estômago doer muito – disse Pablo, olhando Ruth como se pudesse enxergar sua alma.
- Você é o cara mais louco que eu conheço Pablo – disse Ruth.
- Olha Ruth, eu não tenho nada contra Deus, mas se ele nos deu livre arbítrio, fiz minha escolha – disse Pablo, acariciando o rosto de Ruth.
- Eu tenho medo de te perder Pablo, muito medo – disse Ruth com os olhos cheios de lágrimas.
- Você não vai me perder, somos um só, e quando eu for, não irei de verdade, estarei sempre dentro de você, Ruth, eu sou seu câncer e você minhas víceras, somos poluição e nada, somos um Ruth, e não precisamos de um corpo para continuar assim – disse Pablo com um brilho nos olhos.


Tive que mentir para ela; mas numa coisa eu não menti; eu amo do fundo de meu inferno e do auge de minha lucidez.

Está quente aqui, não importa, no inferno também está, como eu queria gritar e correr! Correr! Correr! Então me cansaria e assim que passasse o cansaço voltaria a correr, igual ao tempo em que corria livre pela casa da vovó, lá tinha sorvete, bicicletas, vídeo game e um grande televisor colorido, mas tinha também saudade.

Quarenta e seis dias;
Quarenta e seis vidas;
Quarenta e seis mortos num desastre;
Quarenta e seis drogados, fogem do centro de reabilitação;
Quarenta e seis, é um numero grande para ser escrito rápido;
Quarenta e sete crianças nascem; mas a minha nem foi fertilizada; esperar, logo, logo você vira meu doce sonho.

Tive um sonho negro, era dia e o sol não brilhava, era dia, mas ventava, com a brisa da noite, a lua saiu em pleno meio dia e estava na cor de sangue, um homem grávido saiu das nuvens com uma grande lança manchada de...

Acho que era uma espécie de sangue preto; demônios furiosos o seguiam, suas caudas eram longas, suas vestes profanas, tinham tantos anjos enforcados, todos com suas asas cortadas, era assustador, uma garota morta com suas viceras expostas era abusada sexualmente.
Tudo era loucura, tudo era tortura, homens e mulheres pulavam de precipícios. Velhas; mulheres muito velhas, davam a luz a criaturas deformadas.
Eu me levantei e vi um grande trono vazio, não podia ajudar, não tinha forças, era inútil e triste.

Eu gritei o mais alto que pude, eu gritei tanto que cheguei a sangrar, ah, pai! Minha dor não foi o suficiente, tudo foi destruído, não restou mais nada na terra, nem um ser vivo, então veio a paz e o diabo chorou tanto que soluçou, uma brisa fria e triste veio do inferno e me tocou a face, então acordei.

Ouvi sons de línguas estranhas, vozes tristes e roucas, vozes trêmulas, vozes falhas, eram tantas que não podia entende-las, só pude sentir suas dores, ouve um grande grito, e então, aquele homem grávido tinha dado a luz, quando me aproximei, para meu espanto, o bebê tinha meu rosto, eu já estava acordado e mesmo assim via tudo com uma clareza aterrorizante, então chorei; tentei fazer uma oração, mas havia esquecido como se fala com o criador. Escrevi algo para que pudesse me acalmar:


XII


Meu doce lar, minha doce esposa sem rosto, meu filho deformado, meu cão raivoso, essa é minha família, nela me fortaleço e esqueço de todos os problemas do mundo normal.

Quero colocar meu filho no colo e dar-lhe de comer, amamentá-lo com meus mamilos atrofiados, ele crescerá lindo e forte, serei todo orgulho e todo presente.
Minha esposa é linda, é compreensível, passo horas admirando sua beleza, gosto de lhe acariciar os cabelos e sentir seu seio.

A família perfeita é utópica, minha família é minha e verdadeira, sou um guardião, sou pai, sou marido, sou feliz em meu trono decadente, aqui posso ser eu mesmo.

(continua...)

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