sábado, janeiro 15, 2011

Escravidão como estado de espírito.

NAS ÚLTIMAS semanas, a sobrecarga de trabalho tem sido imensa aqui no FMI. Hoje, estou escrevendo na undécima hora, e sendo interrompido a cada momento. Desculpe, leitor, se o artigo ficar meio desconjuntado. O cargo de diretor-executivo tem uma dimensão político-diplomática. Não raro, surgem conflitos e situações de tensão.


Em momentos como esses, um dos meus problemas recorrentes torna-se particularmente agudo: a insônia. Às vezes, as insônias se sucedem por várias noites consecutivas. Mas não me queixo. De certa forma, eu tiro partido das insônias.


Graças a elas, leio livros para os quais só na madrugada encontro tempo e cabeça. Leituras não relacionadas ao trabalho, claro. Caso contrário, a insônia se agravaria ainda mais. Recentemente, comecei a ler um livro de Winston Churchill sobre a história dos Estados Unidos.


É maravilhosamente bem escrito, como tudo que saía da pena desse grande estadista que era, também, um artista da palavra. Aliás, o domínio da palavra era sabidamente um dos aspectos centrais do seu gênio político. No capítulo sobre a Guerra Civil Americana (1861-1865), Churchill relata um aspecto curioso. Quando a guerra estourou, muitos pensavam que a vitória do Norte seria relativamente rápida. Os Estados do Norte tinham uma população bem maior e uma base industrial bastante desenvolvida. Nos Estados do Sul, preponderava uma economia agroexportadora baseada no sistema escravista.


A população do Sul, além de menor, era composta em grande medida de escravos. Os Estados do Sul corriam o risco de ter uma enorme quinta-coluna, especialmente se ficasse claro para a população escrava que a vitória do Norte resultaria, como de fato resultou, na abolição da escravatura. Surpreendentemente, os escravos foram, em geral, muito obedientes e solidários com os seus senhores. Isso contribuiu para que a guerra durasse mais do que se esperava -nada menos que quatro anos. Os escravos continuaram obedientes até a fase final, mesmo quando o esforço final de resistência do Sul levou a que muitas fazendas e plantações ficassem sob a guarda das mulheres dos proprietários! Essa escravidão internalizada, arraigada na alma e no espírito, é uma característica psicológica de muitos países subdesenvolvidos como o Brasil.


O brasileiro é, em certa medida, como o escravo do Sul. Não sabe que pode ser livre e continua adotando atitudes hesitantes e até subalternas nas negociações internacionais -mesmo quando a posição objetiva do país é mais forte em termos econômicos e políticos. O prestígio do Brasil no exterior e o seu potencial de influenciar a condução de assuntos internacionais é hoje muito maior do que quando estávamos passando o pires em Washington e outras capitais. E, no entanto, muitos ainda se comportam como se brasileiro precisasse andar de cabeça baixa, pedindo licença para defender os interesses do Brasil. Todo representante do Brasil tem que lutar permanentemente em duas frentes. Não só no exterior, para enfrentar pressões e resistências das grandes potências, defensoras renitentes do status quo, mas também na retaguarda para neutralizar a ação dos brasileiros que têm uma visão acanhada do potencial do país. Parafraseando Nelson Rodrigues, poderíamos dizer que a escravidão deixa na alma imensas e lívidas Sibérias.


PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. , 52, escreve às quintas-feiras nesta coluna. Diretor-executivo no FMI, representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago).

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